COVID-19
SOBRE CRIMES E PENAS EM TEMPOS DE PANDEMIA

A pandemia do COVID-19 representa, na visão de muitos, o maior desafio a ser enfrentado nesta geração. Um cenário de incertezas, medo e instabilidade faz surgir, com ele, inúmeras dúvidas nas cabeças daqueles que, atolados de informações e desinformações, indagam-se a respeito da licitude ou ilicitude de condutas que, diferentemente das percebidas em situações de normalidade, não acionam, de pronto, os radares da criminalidade. Por isso, esse pequeno texto tem como finalidade apontar, de maneira singela, objetiva e sem qualquer pretensão de esgotamento dos temas, alguns aspectos penais relevantes em tempos de enfrentamento do coronavírus.

 

1. Quais são as leis, portarias e decretos que regulamentam o contexto atual?

a) Lei Federal nº 13.979/20;

Às vésperas do endurecimento nas políticas públicas de combate ao COVID-19, foi editada a Lei nº 13.979/20, que “dispõe sobre as medidas para enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus responsável pelo surto de 2019”.

Do ponto de vista criminal, um de seus pontos mais relevantes é o art. 3º, que elenca uma série de medidas que podem ser adotadas para o combate ao coronavírus, como o isolamento; quarentena; realização compulsória de exames médicos, testes laboratoriais e exumação de cadáveres; e restrição temporária de rodovias e aeroportos.

Nos termos da lei, isolamento é a “separação de pessoas doentes ou contaminadas, ou de bagagens, meios de transporte, mercadorias ou encomendas postais afetadas, de outros, de maneira a evitar a contaminação ou a propagação do coronavírus”. Quarentena, por sua vez, é a “restrição de atividades ou separação de pessoas suspeitas de contaminação das pessoas que não estejam doentes, ou de bagagens, contêineres, animais, meios de transporte ou mercadorias suspeitos de contaminação, de maneira a evitar a possível contaminação ou a propagação do coronavírus”.

Uma das principais diferenças entre os dois é que a quarentena, ao contrário do isolamento, é ato administrativo, emanado do poder público, que tem como objetivo a restrição de atividades que possam contribuir para a aglomeração de pessoas.

 

b) Portaria do Ministério de Saúde nº 356, de 11 de março de 2020;

Com o objetivo de regular e detalhar a Lei nº 13.979/20, foi editada a Portaria nº 356, de 11 de março de 2020. Ela determina, em seu art. 3º, §1º, que medida de isolamentosomente poderá ser determinada por prescrição médica ou por recomendação do agente de vigilância epidemiológica, por um prazo máximo de 14 (quatorze) dias, podendo se estender por até igual período”.

Em relação à quarentena, o art. 4º, §1º prevê que a medida “será determinada mediante ato administrativo formal e devidamente motivado e deverá ser editada por Secretário de Saúde do Estado, do Município, do Distrito Federal ou Ministro de Estado da Saúde ou superiores em cada nível de gestão, publicada no Diário Oficial e amplamente divulgada pelos meios de comunicação”.

Estipulou-se, em suma, quem é competente para a determinação de isolamento e de quarentena. No isolamento, cabe a médico ou agente de vigilância epidemiológica; e na quarentena, cabe ao poder público dos Estados, dos Municípios ou do Distrito Federal.

A Portaria pode ser encontrada, na íntegra, aqui.

 

c) Portaria Interministerial nº 5, de 17 de março de 2020.

Foi editada, por fim, a Portaria Interministerial nº 5, de 17 de março de 2020. Ela tem como objetivo dispor “sobre a compulsoriedade das medidas de enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus (COVID-19), bem como sobre a responsabilidade pelo seu descumprimento”.

Ela determina, portanto, algumas consequências que podem surgir com o descumprimento das medidas previstas na Lei nº 13.979/20, quando determinadas pelas pessoas ou entes dispostos na Portaria nº 356, de 11 de março de 2020. Elenca-se, como mais relevante, que o art. 3º aponta que “o descumprimento das medidas previstas no art. 3ª da Lei nº 13.979, de 2020, acarretará a responsabilização civil, administrativa e penal dos agentes infratores”.

A Portaria pode ser encontrada, na íntegra, aqui.

 

d) Decreto Federal nº 10.282, de 20 de março de 2020

Uma atitude do Governo Federal até o momento foi a edição do Decreto Federal nº 10.282, de 20 de março de 2020, que regulamenta a Lei nº 13.979/20 e dispõe apenas sobre os serviços e atividades essenciais, que não deverão ser interrompidos. Dentre eles, inclui-se aqueles indispensáveis ao atendimento das necessidades inadiáveis da comunidade, assim considerados aqueles que, se não atendidos, colocam em perigo a sobrevivência, a saúde ou a segurança da população, tais como:

  • assistência à saúde, incluídos os serviços médicos e hospitalares;
  • assistência social e atendimento à população em estado de vulnerabilidade;
  • atividades de segurança pública e privada, incluídas a vigilância, a guarda e a custódia de presos;
  • atividades de defesa nacional e de defesa civil; e
  • cuidados com animais em cativeiro.


A íntegra do Decreto, com todas suas disposições, pode ser encontrada aqui.

 

2. O que diz o Código Penal?

O art. 268 do Código Penal criminaliza a conduta de “infringir determinação do poder público, destinada a impedir introdução ou propagação de doença contagiosa”. A pena é de detenção de um mês a um ano e multa. Já o art. 330 do Código Penal dispõe que é crime “desobedecer ordem legal de funcionário público”. A pena é de detenção de quinze dias a seis meses e multa.

O que seria, então, determinação do poder público ou ordem legal de funcionário público cuja desobediência ou ignorância levariam à configuração dos crimes?

Em aparente resposta a essa pergunta, a Portaria Interministerial nº 5 de 17 de março de 2020 estabelece, em seu art. 4º, que poderá ser criminalmente responsabilizada a pessoa que desobedecer isolamento determinado “por prescrição médica ou por recomendação do agente de vigilância epidemiológica”, conforme previsto na Portaria nº 356, de 11 de março de 2020. Além disso, o mesmo art. 4º determina que a pessoa que se negar a realizar exames médicos, testes laboratoriais ou tratamento médico específico, quando houver “indicação médica ou de profissional de saúde”, também estará sujeita a sanção penal.

E a regra é a mesma no caso da quarentena. Segundo o art. 5º, da Portaria Interministerial nº 5, de 17 de março de 2020, poderá ser criminalmente responsabilizada a pessoa que descumprir ordem de quarentena emanada de autoridade específica, que, conforme prevê a Portaria nº 356, de 11 de março de 2020, “será determinada mediante ato administrativo formal e devidamente motivado e deverá ser editada por Secretário de Saúde do Estado, do Município, do Distrito Federal ou Ministro de Estado da Saúde ou superiores em cada nível de gestão

 

3. Em meio a tantas leis e portarias, o que pode, afinal, ser considerado crime?

Tudo isso pode ser interpretado da seguinte forma: a Lei nº 13.979/2020 prevê quais medidas podem ser adotadas para o combate ao vírus. A Portaria nº 356, de 11 de março de 2020 diz quem pode adotar as medidas previstas na Lei. E a Portaria nº 5, de 17 de março de 2020, determina que quem descumprir alguma das medidas previstas na Lei, determinada por autoridade descrita na Portaria nº 356, poderá responder criminalmente pelos delitos previstos nos arts. 268 ou 330 do Código Penal.

 

4. E o que acontece com o estabelecimento que permanece aberto e funcionando durante a quarentena? O empresário comete crime?

As Portarias que regulam a Lei Federal nº 13.979/2020 não contêm determinação expressa e uniforme em relação ao funcionamento de estabelecimentos empresariais no Brasil. O que se percebe até agora, entretanto, é que os Governos Estaduais e Municipais têm se movimentado para editar normas e decretos que pretendem ditar os rumos das políticas públicas locais em meio à emergência sanitária.

No caso de Minas Gerais, o governador Romeu Zema – em movimento coordenado com o Decreto do Senado Federal nº 6, de 20 de março de 2020 –, instituiu, por meio do Decreto Estadual nº 47.891, de 20 de março de 2020, estado de calamidade pública em Minas Gerais. O Decreto Estadual deu ao “Comitê Extraordinário COVID-19” o poder de editar deliberações a respeito das medidas adotadas, no âmbito estadual, pra combate ao vírus. Todas as deliberações podem ser encontradas aqui.

Dentre as várias deliberações já publicadas, destaca-se a de nº 8, que “dispõe sobre medidas emergenciais a serem adotadas pelo Estado e municípios enquanto durar a situação de emergência em saúde pública no Estado”. Ela prevê, por exemplo, que os municípios devem suspender serviços, atividades ou empreendimentos, públicos ou privados, que necessitem de alvará de localização e funcionamento, com circulação ou potencial aglomeração de pessoas, a exemplo de:

  • eventos públicos e privados de qualquer natureza com público superior a trinta pessoas;
  • atividades em feiras, inclusive feiras livres;
  • shopping centers e estabelecimentos situados em galerias ou centros comerciais;
  • cinemas, clubes, academias de ginástica, boates, salões de festas, teatros, casas de espetáculos e clínicas de estética;
  • museus, bibliotecas e centros culturais.

Haverá quem entenda que, existindo essa deliberação suspendendo o funcionamento de determinados empreendimentos e serviços, o empresário que, contrariando as orientações, funcionar normalmente, cometerá o crime previsto no art. 268 ou no art. 330 do Código Penal. Entretanto, a questão não parece ser simples assim.

As normas de abrangência federal que regulam a atual emergência sanitária vinculam a ocorrência de infração penal somente àqueles casos em que houver desobediência direta a determinação de autoridade competente em relação às medidas de isolamento e quarentena, cuja observância depende, evidentemente, de sua prévia decretação oficial. De modo simples, somente será possível desobedecer a ordem de quarentena se houver, de fato, uma ordem de quarentena.

Isso conduz à conclusão de que, ao menos nos termos da Portaria Interministerial nº 5, de 17 de março de 2020 – que, reprise-se, regula a compulsoriedade das medidas previstas na Lei nº 13.979/20 –, o empresário que operar seu negócio normalmente somente cometerá o crime previsto no art. 268 do Código Penal se, no Estado em que ele funciona, houver uma ordem formal de quarentena, decretada pelo poder público, na pessoa das autoridades descritas no art. 4º, §1º, da Portaria nº 356, de 11 de março de 2020.

No caso de Minas Gerais, a Deliberação nº 8 do “Comitê Extraordinário COVID-19” não menciona, efetivamente, a palavra “quarentena”, apesar de estabelecer uma série de restrições ao funcionamento de empresas que, no final das contas, muito se assemelham a ela. É possível que se sustente, com base nisso, a ocorrência do crime do art. 268 do Código Penal pelo descumprimento das restrições já impostas em Minas Gerais.

A situação é diferente do que acontece, por exemplo, no Estado de São Paulo, onde o Governador João Doria baixou o Decreto nº 64.881, de 22 de março de 2020, que instaurou oficialmente quarentena em todo estado a partir do dia 24 de março de 2020. O Decreto prevê a suspensão, dentre outras medidas, do atendimento presencial ao público em estabelecimentos comerciais e prestadores de serviços, especialmente em casas noturnas, “shopping centers”, galerias e estabelecimentos congêneres, academias e centros de ginástica. Nesse caso, havendo uma decretação oficial e formal de quarentena, verifica-se, com maior facilidade, a possibilidade de responsabilização penal daquele que desobedecer ao poder público.

Diante desse cenário nebuloso e desordenado, a melhor alternativa é ter cautela na tomada de qualquer decisão. Conforme demonstrado, é possível, com base nas leis, portarias e decretos vigentes, sustentar a responsabilização criminal pelo descumprimento de medidas sanitárias – o que não exclui, inclusive, eventuais penalidades administrativas (como multa) que podem incidir sobre aqueles empresários que funcionarem sem alvará municipal. Por isso, é imprescindível que, nesse momento delicado, se procure a ajuda e orientação de um advogado antes da adoção de qualquer medida.

Felipe Augusto Ribeiro de Miranda [1]


[1] Advogado criminalista. Graduado em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e pós-graduando em ciências penais (PUCMG). Durante a graduação, realizou cursos de especialização na Tsinghua University, em Pequim (China) e na Ludwig-Maximillians Universität, em Munique (Alemanha), com foco em Direito Público. Foi bolsista pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico – CNPq, coordenador do Grupo de Estudos em Direito Internacional Humanitário da UFMG e é vice-presidente do Instituto de Ciências Penais Jovem.